Dos assentos elegantes do ônibus e14 em Montevidéu, capital do Uruguai, é difícil dizer que a suave máquina elétrica é chinesa. Somente um viajante com olhos de lince perceberia o pequeno adesivo na janela com o nome da BYD, uma fabricante chinesa. As perguntas sobre as preocupações dos passageiros quanto à origem chinesa do ônibus causam perplexidade. Eles são uma grande melhoria em relação aos ensurdecedores ônibus a gás que substituíram. A operadora acaba de encomendar mais 200. Milhares de ônibus semelhantes circulam por outras cidades latino-americanas. Mas os políticos dos Estados Unidos temem que a crescente dependência da América Latina em relação à tecnologia verde chinesa, de ônibus elétricos a painéis solares, seja um problema. Até mesmo uma ameaça.
As tensões estão aumentando porque os riscos são altos. A rápida adoção de tecnologias verdes, como veículos elétricos (EVs), painéis solares e baterias, é um pilar vital dos esforços para deter a mudança climática. Essas tecnologias também são um sucesso econômico. Em 2022, o investimento estrangeiro direto anunciado em energia renovável totalizou globalmente mais de US$ 350 bilhões, muito mais do que os investimentos anuais em qualquer outro setor, não apenas naquele ano, mas em décadas. Isso fez da tecnologia verde a mais recente frente na rivalidade dos Estados Unidos com a China.
A América Latina desempenha um papel extraordinário nisso. 60% da eletricidade da região, líder mundial, é proveniente de fontes renováveis. Ela possui uma grande quantidade de minerais essenciais necessários para produzir tecnologias verdes e é rica o suficiente para ser um mercado importante para elas. A China domina de tal forma a produção global de painéis solares, baterias e turbinas eólicas que os líderes dos Estados Unidos temem estar perdendo a corrida da tecnologia verde, tanto globalmente quanto em seu próprio território. Outros países em desenvolvimento que estão tentando se tornar verdes e, ao mesmo tempo, equilibrar as tensões sino-americanas devem prestar atenção.
A China está concentrada no que ela chama de “os três novos”: veículos elétricos, baterias de íon-lítio e painéis solares. Em 2021, suas exportações desses produtos para a América Latina já totalizavam US$ 5 bilhões. Desde então, elas quase dobraram. O Brasil domina no geral, mas as exportações para a região como um todo estão crescendo ainda mais rápido. “A importância da China para o nosso mercado é imensa”, diz Rodrigo Sauaia, da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica.
Cerca de 99% dos painéis solares importados para a América Latina no ano passado foram fabricados na China. Isso é ainda mais do que seria sugerido pela posição dominante da China em energia solar, em que possui 80% da capacidade de fabricação global; em energia eólica, esse número é superior a 60%. Há mais ônibus chineses nas ruas de Santiago, a capital do Chile, do que em qualquer outra cidade fora da China. No ano passado, cerca de 70% dos veículos elétricos importados para a América Latina eram chineses. E mais de 90% das baterias de íon-lítio importadas para a América do Sul também eram chinesas.
O investimento direto da China em tecnologia verde e construção no continente está aumentando. Seus investimentos em energia mudaram repentinamente para as energias renováveis em 2015, de acordo com os dados analisados por Margaret Myers, do Inter-American Dialogue, um think-tank em Washington. O interesse do país na distribuição e transmissão de eletricidade aumentou.
Os negócios de serviços públicos no valor de US$ 17 bilhões representaram cerca de 75% das fusões e aquisições chinesas nos últimos cinco anos na América Latina. A State Grid, uma empresa estatal chinesa de serviços públicos, comprou duas das maiores distribuidoras de eletricidade do Chile e atende a cerca de metade do mercado do país. Depois de uma série de aquisições no Peru, as empresas estatais chinesas estão preparadas para controlar a distribuição de toda a eletricidade em Lima, a capital.
Outros setores verdes também estão atraindo investimentos. Em 2022, as empresas chinesas investiram US$ 2,2 bilhões no setor de energia elétrica, 35% do total de investimento estrangeiro chinês na América Latina naquele ano. A maior parte desse investimento foi na fabricação de veículos elétricos e baterias no Brasil, México e Argentina. No Brasil, a BYD assumiu o controle de uma antiga fábrica da Ford (será o maior centro da BYD fora da Ásia, produzindo inicialmente 150 mil veículos por ano, com potencial para aumentar esse número para 300 mil. No México, a BYD está planejando uma fábrica de tamanho semelhante).
Muitos na América Latina veem isso como uma boa notícia. Os painéis solares e os carros elétricos chineses são baratos e eficazes. Qualquer dúvida sobre o aumento das importações é equilibrada pela esperança de que o investimento chinês leve à fabricação local de mais equipamentos ecológicos, aumentando os empregos e o crescimento. No caso dos painéis solares, isso parece duvidoso. A China é tão dominante e os painéis são tão padronizados que a produção provavelmente permanecerá na China.
O processamento de lítio para baterias parece mais provável. Quando esteve na China no ano passado, Gabriel Boric, presidente do Chile, anunciou que a Tsingshan, uma empresa chinesa de processamento de metais, investiria US$ 233 milhões em uma fábrica chilena para produzir fosfato de ferro-lítio, um composto usado para fabricar baterias mais baratas. “O mais importante”, disse ele, é que “estaremos criando cadeias de valor e transferindo conhecimento”. A fabricação local de turbinas eólicas também parece plausível.
Esquentando os joules
O maior potencial para a fabricação verde local está nos veículos elétricos, que o Brasil está tentando acelerar aumentando as tarifas sobre as importações. O plano da BYD de produzir 150 mil veículos elétricos por ano no Brasil é uma grande aposta, equivalente a mais da metade das exportações globais da empresa em 2023 e muito mais do que os 18 mil veículos BYD que o Brasil importou naquele ano. Mas o Brasil é um grande mercado, com 2,3 milhões de veículos novos registrados em 2023. Apenas 2,5% deles eram elétricos, mas esse número foi o dobro do registrado em 2022. O fato de os países vizinhos da América Latina também estarem eletrificando suas frotas aumenta a oportunidade.
Evan Ellis, da Escola de Guerra do Exército dos EUA, diz que o impasse sobre a tecnologia verde é uma “luta civilizacional”. Para os Estados Unidos, isso inclui um trio de preocupações. A primeira é que a tecnologia verde chinesa pode representar uma ameaça à segurança dos Estados Unidos e de outros países. Recentemente, o presidente Joe Biden ordenou uma investigação de segurança nacional sobre os riscos apresentados pelas tecnologias verdes chinesas e alertou que os veículos elétricos chineses poderiam ser “acessados e/ou desativados remotamente”. Um dos temores é que eles possam coletar dados sobre locais militares sensíveis. Um temor mais extremo é que o acesso remoto poderia transformá-los em armas.
Esse cenário sombrio é improvável, especialmente na América Latina. Mesmo que essa intromissão fosse tecnicamente possível, o que está longe de ser claro, qualquer tentativa ou ameaça de transformar os veículos elétricos em armas causaria grandes danos ao setor automobilístico global da China. A ameaça dos painéis solares ou dos parques eólicos é ainda mais limitada. Os próprios painéis solares são “burros” e não enviam dados a lugar algum por padrão. Para peças conectadas, como inversores, embora as empresas chinesas dominem, há muitas outras opções no mercado.
A segurança é importante para os líderes latinos, mas em um sentido diferente. “O impulso para uma energia mais limpa também é uma questão de segurança nacional”, diz Diego Pardow, ministro da energia do Chile. Ele concorda que parceiros diversificados de energia são importantes. Mas mesmo que grande parte da tecnologia verde do Chile venha da China, reduzir a dependência de gás e petróleo importados usando o vento e o sol do Chile reduz os riscos de segurança nacional, pois diminui a exposição do Chile a conflitos no Oriente Médio ou na Ucrânia, explica ele.
O segundo temor dos Estados Unidos é que a dependência latina da tecnologia verde chinesa dê à China uma vantagem política que ela poderia usar para exercer pressão sobre qualquer coisa, desde Taiwan até acordos exclusivos de mineração. No entanto, os painéis solares e as turbinas eólicas proporcionam pouca influência contínua depois de instalados. Além disso, a América Latina possui cerca de 60% dos recursos globais de lítio, o que é uma moeda de troca verde muito útil. A alavancagem também pode vir de quaisquer laços econômicos, e os Estados Unidos e a Europa são investidores muito maiores na América Latina em geral do que a China.
Embora a China possa estar avançando mais rapidamente na tecnologia verde, a Europa e os Estados Unidos também estão ativos. O maior projeto de energias renováveis anunciado na América Latina em 2022 foi uma usina de biocombustíveis para aviação no Panamá, que está sendo construída por uma empresa dos Estados Unidos. A Europa, por sua vez, espera ter um papel importante no hidrogênio verde. Para a América Latina como um todo, os Estados Unidos ainda são o maior parceiro comercial.
Algumas preocupações com a pressão política são mais razoáveis. A propriedade chinesa de grandes parcelas de infraestrutura crítica, como redes de distribuição de eletricidade no Peru e no Chile, é mais preocupante porque o fluxo de elétrons através dos fios é algo que a empresa operadora pode facilmente interromper. Ao contrário da Europa e dos Estados Unidos, muitos países latino-americanos não possuem uma instituição para avaliar os investimentos estrangeiros em termos estratégicos ou de segurança nacional. Ainda assim, diz Pardow, a maior parte da rede de distribuição do Chile era de propriedade de uma empresa espanhola. “Somos mais diversificados do que costumávamos ser”, observa.
O ‘medo de ficar de fora’ da tecnologia verde
A última preocupação do Tio Sam é que as empresas e os trabalhadores da América Latina e dos Estados Unidos estejam perdendo para os chineses no setor de tecnologia verde, que está moldando o mundo, graças ao forte apoio do Estado na China.
Em março, Janet Yellen, secretária do Tesouro dos EUA, disse que o excesso de capacidade chinesa em tecnologias verdes “prejudica as empresas e os trabalhadores americanos, bem como as empresas e os trabalhadores de todo o mundo”. As autoridades de Washington temem que uma enxurrada de produtos chineses leve à desindustrialização não apenas na América Latina, mas em todos os países que permanecem abertos às importações de tecnologia verde da China.
A existência do FDI de tecnologia verde da China é uma prova contra isso (FDI é uma nova tecnologia padronizada, desenvolvida em conjunto por fabricantes e fundações de tecnologia de processo e automação para a integração fácil e uniforme de dispositivos de campo em vários sistemas). De qualquer forma, há poucas alternativas ocidentais boas para os “novos três” da China. Se o FDI continuar se expandindo e a produção local vier a rivalizar com as importações chinesas, a ansiedade sobre a desindustrialização latina deverá diminuir.
No entanto, as preocupações dos Estados Unidos sobre sua fraqueza em tecnologias verdes continuarão. Elas são compreensíveis, mas até que suas empresas consigam fornecer, de forma confiável, alternativas baratas, eficazes e em larga escala para as ofertas chinesas, pedir cautela aos líderes latino-americanos não adiantará muito. “Alertar sobre os riscos sem colocar uma alternativa no papel não é nada útil”, diz Thiago de Aragão, da Arko Advice, uma consultoria política brasileira. Em vez disso, ele diz, “isso cria antipatia”.
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