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‘O corpo muda, mas o desejo permanece’: conheça a dupla 80+ que fala sobre sexo e envelhecimento

by Medicina Saúde
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Ao escrever sobre sexualidade e envelhecimento, não consigo deixar de lembrar da minha bisavó, que viveu até os 92 anos. Pouco antes disso, em uma fase sem muitas amarras para dialogar, ela me disse: “Sabe de coisa? Eu desobedeci às escrituras apenas de duas formas”. “Como assim, bisa?”, perguntei. “Primeiro, por ter me casado novamente depois que fiquei viúva. E, em segundo lugar, porque tive pensamentos ‘errados’ depois que o segundo marido se foi”. Na época, não soube muito bem o que dizer, mas aquela conversa ficou comigo. Era como se ela tivesse internalizado a ideia de que, até nos aspectos mais privados de sua sexualidade, havia algo a ser reprimido — ainda mais na velhice.

É por isso que, quando Gilda Bandeira, 82, e Sônia Bonetti, 86, falam sobre o envelhecimento e suas várias camadas – muitas vezes estigmatizadas e consideradas ‘inexistentes’ –, é impossível não se surpreender com a leveza, liberdade e autonomia com que encaram essa fase. Amigas há mais de 60 anos, elas dividem uma história cimentada em mesas de bar, além do canal no YouTube e Instagram “Avós da Razão”, onde o objetivo é a ‘libertação grisalha’. E o sexo, claro, não poderia ficar de fora.

Sônia (à esquerda) e Gilda (à direita) contam que a sintonia entre elas aconteceu de forma instantânea, há 60 anos  Foto: Léo Souza/Estadão

“O envelhecimento é uma fase como qualquer outra. O corpo muda, mas o desejo permanece”, diz Sônia, que recebeu a reportagem em seu apartamento, na capital paulista, para uma conversa sem papas na língua, acompanhada de Gilda.

As duas contam que a ideia de criar o canal, hoje com 500 mil seguidores no Instagram, surgiu durante a pandemia de covid-19, quando o “virtual era a única opção”. “Gravávamos cada uma de sua casa. Ou era online, ou nada feito. E nunca fomos do tipo que fica parada. Sempre fomos daquelas que remam contra a maré”, complementa Gilda, que acumula uma série de tatuagens e mantém o cabelo roxo desde 1990, com variações de tonalidades.

Sentadas em volta de uma mesa, com bebidas e petiscos, elas gravam vídeos sobre os mais variados temas. Além de sexo, também falam sobre autoestima, separação, viagens, afetos, saúde, espiritualidade, luto, relacionamento aberto… “Nossa ideia é tirar o velho da cristaleira. Tirar aquele mofo, aquelas ideias velhas, o preconceito arraigado”, explica Sônia. “Às vezes, perguntam para a gente: ‘Como é que vocês se prepararam?’. Mas não tem preparo para a velhice. Ela simplesmente chega e a gente vai vivendo. O bom humor é essencial. Não é como se não existissem problemas. Claro que eles existem. Mas se você focar neles, você enlouquece. Tem que saber envelhecer com elegância”.

Ao longo da vida, ambas enfrentaram uma série de imposições, especialmente no que se refere à sexualidade. Gilda recorda a rigidez com que as mulheres eram tratadas na juventude, impedidas de realizar atividades simples como andar de bicicleta, sob o pretexto de que “menina não podia suar”. “Quando eu ficava correndo com os primos, minha mãe me puxava: ‘Senta aqui um pouco, que você já está suando’. Era daí para pior. Quando o assunto era sexo, nem se fala. Transar só depois do casamento. Resultado? Casei aos 16. A família só soube quando já tinha casado”, conta Sônia, entre risadas.

O nome do canal não é por acaso. O trocadilho entre “Avós” e “A voz” é sugestivo: a ideia é soltar o verbo, sem censura, para mostrar que envelhecer pode ser “menos careta e mais libertador do que se imagina”. Promotoras ativas do ‘Manifesto Velhas Sem Vergonha’, as duas defendem que a idade não significa a aposentadoria do desejo e que, para o sexo, “basta estar vivo e com saúde”. “Todo mundo quer saber se o velho transa. E a gente responde: claro que sim. Só que com mais calma. Não é aquela coisa ‘louca’ de antes, claro. É mais devagar, comedido. Mas a vontade de sentir prazer segue viva”, afirma Gilda. “Beijar é uma delícia, abraçar é uma delícia… Pensa um pouco: não é maravilhoso você viajar, tomar uma bebida ou comer algo que você gosta? Você não fica extasiado com a sua vida? Por que não outros tipos de sensações?”, questiona Sônia.

Juntas, acumulam 8 tatuagens: Sônia fez a primeira aos 60 anos e Gilda aos 80 Foto: Léo Souza/Estadão

Elas também fazem questão de lembrar que sexualidade vai muito além do ato sexual, englobando afetividade, pensamentos, imaginação, toques, carícias — aspectos que podem permanecer vivos em qualquer idade. “Às vezes você vai ter um par, outras vezes não. Daí a diversão pode ser com você mesma. Eu, por exemplo, me viro numa boa”, confessa Sônia, referindo-se à masturbação.

Ainda assim, elas ressaltam que o sexo não é uma necessidade universal ou constante. Para algumas pessoas, ele pode deixar de ser prioridade ou mesmo perder a importância em determinados momentos. “Tem hora que você pode estar afim, outras não. Esses dias, uma amiga comentou que desmarcou um encontro porque ficou com preguiça de tirar a roupa. Me identifiquei. Ultimamente, ando meio assim. E tudo bem, né? Até mesmo a Rita Lee confessou não querer transar mais, porque descobriu novos prazeres na velhice, como ler, escrever, pintar, cuidar dos gatos…”.

“Qual é o seu nominho?”

Sônia: É difícil para as pessoas imaginarem que os mais velhos podem ter uma vida sexual, porque os preconceitos são vários. Velho não pode comer isso, não pode falar aquilo, não pode usar tal roupa, porque é ridículo, não pode sair de biquíni. Não lidam bem com as marcas do tempo, com a possibilidade de corpos enrugados se permitirem ao prazer. É difícil até encarar a amizade na velhice. Duas amigas que se sentam na mesa de um bar, pedem uma bebida, conversam sobre a vida. Nem nesse contexto é visto como algo natural… imagine no sexo. Estão acostumados a pensar nos velhos em posições de dependência, vulnerabilidade.

Gilda: Acham que você deve ser tratada no diminutivo, como uma “velhinha fofa”. E nós não somos bem as velhinhas fofas, vamos combinar que estamos longe disso. As pessoas chegam assim: ‘Qual é o seu nominho?’.

Sônia: Recentemente, vivi uma situação dessas. Tive que ir ao pronto atendimento porque estava com dengue e era ‘mãozinha’ pra cá, ‘pezinho pra lá’, ‘dá o seu bracinho para por o soro’. Eu estava tão mal que não quis nem reclamar. Mas fala sério… Esse negócio de ‘inho’ já era. Nós, de ‘inho’, ‘velhinhas fofas’, não temos nada.

Ditadura da beleza

Sônia: O sexo na maturidade é assim: se você tem um parceiro antigo, as coisas fluem com mais facilidade. Mas, quando você está solteira ou solteiro e quer encontrar alguém, aí complica. Vivemos numa época de ‘ditadura da beleza’, com essa pressão por procedimentos estéticos, que pesa muito na autoestima e na segurança, especialmente para nós, mulheres mais velhas.

Gilda: Mas, quando tem alguém, pode ser muito bom. É diferente, mais devagar, mais comedido, mas ainda assim prazeroso. Se todas as outras funções do corpo estão funcionando, pode ter certeza que o tesão também está. Então, se você encontra alguém com quem tem uma boa conexão, por que não se permitir? Mesmo se for trocar toques, carícias… O ato sexual não precisa ser necessariamente aquela coisa mais intensa.

Sônia: Eu, por exemplo, adoro beijar na boca.

Gilda: E quem não gosta, né? O jogo da sedução também é maravilhoso, mas faz falta. Quando éramos mais jovens e saíamos, havia toda aquela troca de olhares. Alguém te servia uma bebida, uma pessoa da mesa dizia: ‘Vem cá, senta aqui.’ E pronto, as coisas começavam a acontecer. Era bom se sentir paquerada. As preliminares das preliminares. Hoje em dia, está tudo muito travado. Não sei se é o medo da rejeição. Tipo, ‘e se eu chegar nela e ela não quiser?’.

Sônia: Ah, não sei… Acho que é porque somos velhas mesmo.

Gilda: É, faz mais sentido. [risos]

Para todos os gostos

Gilda: Hoje em dia, o que não falta são possibilidades. Para começar, o sexo não precisa ser necessariamente com um homem. Estamos no século 21. Acho isso maravilhoso, porque, antigamente, tudo era tão fechado. Eu tive amigas que moravam juntas e não podiam dizer que eram um casal. Agora, as coisas estão diferentes. Outro dia, eu estava assistindo televisão — ainda sou dessas que vê TV aberta, fechada, de todo tipo — e, durante uma entrevista, a apresentadora perguntou: ‘Você é casada?’. A garota respondeu que sim. Em seguida, veio outra pergunta: ‘E com quem você está aqui?’. E ela disse: ‘Com ela, minha esposa’. Para quem viveu tão presa, passou pelo auge da ditadura, isso é lindo. Um passo significativo que a gente deu. Também adoro os aplicativos de relacionamento. Amo conversar online, me divirto. Já a Sônia não gosta muito, tem preguiça de conversar.

Sônia: Sou mais chegada nos brinquedinhos [sexuais]. E a Gilda também gosta. Hoje em dia, quem não tem um aparelhinho em casa? Até os casados! Se você entrar em um sex shop, vai encontrar paredes e mais paredes de opções. Tem para todos os gostos.

Gilda: E o tanto de camisinha? Tem de tudo: extra lubrificada, para ejaculação precoce, com diferentes gostos e sabores… Lembro de uma vez que fui comprar porque ia ter um encontro — fazia uns 200 anos e eu não tinha preservativos em casa. Cheguei na farmácia, e a atendente me perguntou: ‘Qual tamanho você quer?’ Pensei: ‘Nossa, que pergunta interessante’. Na minha época, só existia um único tipo, aquela borracha horrível. E detalhe: eu nem tinha visto a figura ainda, nem travado conhecimento! Comecei a rir e falei: ‘Me dá três. Pequena, média e grande. Na hora a gente vê o que faz’.

Menopausa

Gilda: A menopausa pode, sim, impactar na libido, mas, no nosso caso, os sintomas não foram tão intensos. Eu até tive uma secura vaginal, mas esse é o tipo de coisa que pode ser resolvido com tratamento de reposição hormonal, produtos lubrificantes… Não precisa ser um atestado de aposentadoria [da vida sexual]. No caso dos homens, tem a questão da ereção, mas, às vezes, é só questão de um ‘comprimidinho azul’. Claro que não vai chegar em uma farmácia falando ‘me dá um Viagra’. É como o hormônio. A mulher que faz reposição também precisa de um médico.

Sônia: O difícil é que os homens, principalmente os velhos, nunca admitem as falhas. Não aceitam quando precisam usar óculos, quando estão ficando surdos e precisam usar aparelhos, se precisam tomar estimulantes sexuais. Eles sempre têm que fazer aquele papel de ‘macho’, ‘varonil’. Aí fica difícil e, querendo ou não, o diálogo é importante. Tem que ter coração aberto, sair da defensiva.

Libertação grisalha

Gilda: E convenhamos, a gente nem tem paciência para isso, né, Sônia? Evitar já é um alívio. Às vezes, é muito melhor estar entre amigos. Falamos a mesma língua, temos uma conexão. É tão bom sair sem carregar expectativas além de uma boa conversa. Esse tipo de afeto é maravilhoso. E olha que tivemos sorte de casar com caras companheiros. Mas, quando a solteirice chegou, vou te contar, foi um sonho.

Eu fui amiga do meu ex-marido até ele morrer. Quando nos casamos, éramos muito novos: eu tinha 14 anos e ele 16. Mas nunca me esqueço do dia em que tive liberdade e autonomia para trabalhar pela primeira vez, como figurinista. Entrei em um estúdio de televisão e fiquei fascinada com tudo aquilo. Foi como abrir a porta para um mundo novo. Essa sensação de liberdade não tem preço — assim como poder chegar em casa e decidir, sem precisar consultar ninguém, se quero deitar, sair, ficar sozinha ou estar com meus amigos. É uma leveza que não troco por nada.

Por isso, só de pensar em um relacionamento fixo, a primeira coisa que vem à cabeça é: vai encher o saco.

Sônia: Não tem nada melhor do que ser dona do próprio tempo. A vida que escolhi, sozinha, tem me dado os melhores momentos. Eu sou livre: não preciso cozinhar quando não quero, posso dormir, acordar, viajar, transar… tudo no meu ritmo. Isso é o que chamamos de ‘libertação grisalha’.

Viver com vida

Gilda: Julgamento? Ah, sim, sempre tem. Enquanto algumas mulheres comentam nos vídeos algo como ‘cheguei aos 60 e nem um bombeiro apaga meu fogo’, outras — ou até homens — aparecem para chamar de ‘sem-vergonhice’. É cada crítica que vou te contar. Mandam a gente ir para igreja rezar e por aí vai. Acho que isso tem a ver com criação, com os moldes rígidos da nossa época, ou até com frustração. Quantas mulheres, mesmo na nossa idade, só vivenciaram o sexo em função do prazer do parceiro? São muitas.

Os mais velhos precisam aproveitar as possibilidades. Qual é a alternativa? Não envelhecer? A morte é o outro lado da moeda, e eu, particularmente, não tenho a menor intenção. Como dizia Chico Anysio: ‘Eu não tenho medo de morrer, eu tenho pena, porque viver é tão bom.’

Sônia: Essas pessoas precisam abrir a cabeça, especialmente sobre o próprio corpo. O pior da velhice é o preconceito que o velho tem contra si mesmo. É isso que prende… O envelhecimento não precisa ser doloroso, limitante.

Gilda: Claro que, com o tempo, as mudanças chegam. Você acorda toda amassada, vai para o banho, se olha nua no espelho e pensa: ‘Jesus amado, o que vem a ser isso?’ Mas é o que temos para hoje. Tem plano B? Não tem. Então, você se veste da melhor forma, sai da frente do espelho, encarna a Gisele Bündchen e vai. ‘Ah, mas eu estou com a bunda caída, tenho pelancas…’ E daí? Faz parte. O tempo nos deu. São as marcas de quem viveu muito, aproveitou muito — e que ainda deve continuar aproveitando, que é para viver com vida e, lá na frente, descansar feliz.



Fonte: Externa

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