Esta reportagem é a primeira de uma série produzida pelo Estadão em Israel sobre os seis meses dos atentados de 7 de outubro e o impacto da guerra no país
NIR OZ, ISRAEL – Quanto tempo dura o cheiro da morte? No kibutz Nir Oz, no sul de Israel, as marcas do horror perpetrado pelo grupo terrorista Hamas, nos atentado de 7 de outubro, ainda afetam os cinco sentidos, meses depois da tragédia. É difícil passar pelo refeitório usado como necrotério improvisado em razão dos odores ainda presentes.
Casas do kibutz, umas incineradas, outras cravejadas de balas, terão de ser demolidas. Numa delas, tudo virou cinza e ferro retorcido. Noutra, ainda há sangue no chão de gente que tentou se proteger da fúria dos terroristas. É possível ouvir tiros da artilharia israelense na Faixa de Gaza, a 1,5 km dali. No horizonte, prédios semidestruídos de Khan Younis, um dos alvos do Exército, são visíveis a olho nu.
Durante a visita da reportagem, no início de março, Nir Oz ainda estava isolado por determinação do governo de Israel. O kibutz, no entanto, serve como uma metáfora sobre como Israel vive o 7 de outubro. Aquele sábado não terminou e muitos revivem aquelas 24 horas, dia após dia.
A família de Michel Nysembaum, o único refém brasileiro em poder do Hamas, diz que essa é exatamente a sua realidade. “Eu vivo o dia 7, de novo e de novo, e não consigo voltar para a minha vida normal”, conta Ayala Harel, sobrinha do brasileiro.
Famílias na mira de um ataque
O Hamas ataca o sul de Israel com foguetes e mísseis desde 2001. Com isso, toda uma infraestrutura foi preparada na região para evitar um tipo muito específico de ataque.
Na estrada que liga Tel-Aviv ao sul de Israel, por exemplo, existem diversos abrigos contra esses mísseis. São pequenas construções de concreto, sem porta, para que civis se protejam até que os projéteis sejam interceptados. As casas dos kibutzim da região contam com quartos seguros, com portas e janelas reforçadas, para resistir a um foguete que escape do sistema antiaéreo Domo de Ferro, responsável por eliminar os perigos que vêm de Gaza.
Em 7 de outubro, no entanto, nada disso foi o suficiente para evitar o massacre de 1,2 mil pessoas. Quem se trancou no quarto seguro viu o Hamas incinerar a casa. Quem buscou um abrigo antiaéreo foi alvo de tiros e granadas. E quem estava numa área aberta se tornou um alvo fácil.
A estrada da morte
Segundo o relato de sua irmã, Mary Shohat, e sua sobrinha, Michel Nysembaum, ex-combatente da Força Aérea de Israel, para onde emigrou há mais de 40 anos, foi alertado pela filha na manhã do dia 7 de que havia um ataque terrorista em curso. Seu genro lhe deu um relato similar, ainda que não se soubesse exatamente a escala do que estava ocorrendo.
Mesmo assim, o pai de duas mulheres e avô de seis crianças decidiu ir buscar uma delas, de 4 anos, com o genro, que servia na base de Re’im, a cerca de 10 km da Faixa de Gaza.
Nysembaum então pegou o carro, uma arma e, saiu de Sderot, onde vivia, rumo ao sul e entrou na rodovia 232. A estrada, nos dias seguintes ao atentado, ficaria conhecida como a ‘rodovia da morte’. Ele dirigiu por alguns minutos, enquanto homens do Hamas em picapes adaptadas com fuzis atacavam carros e pedestres, atiravam a esmo e preparavam emboscadas.
Nysenbaum tentou um contato com a polícia às 7h02. Depois, parou de atender o telefone. Minutos depois, sua filha apenas conseguiu falar com homens que gritavam ‘Hamas’ e palavras em árabe.
A polícia localizou seu carro e um laptop nos dias que se seguiram ao atentado e até hoje não há detalhes sobre seu estado de saúde. Os remédios enviados pela Cruz Vermelha, segundo a associação que representa os reféns, nunca chegaram a quem precisa deles.
“Estamos nas mãos do Hamas, eles fazem da gente o que eles querem. Meu irmão tem diabetes e doença de Chron. Eu não sei se ele vai sobreviver sem os remédios”, diz Mary Shohat. Apesar disso, ela mantém a esperança. “Vou dar para ele doces que ele gosta e tenho guardados para o reencontro.”
Massacre em campo aberto
A estrada 232 também foi palco da execução a sangue frio de parte das vítimas do festival de música eletrônica Nova e do drama de uma outra brasileira, a paulista Rafaela Treitsman. A garota vivia em Israel desde 2021 e apenas alguns meses antes conhecera o namorado, Hanani Glazer, fã de música eletrônica.
No fim de semana do dia 7, ambos decidiram ir ao Nova, que seria realizado a alguns quilômetros da Faixa de Gaza. Pouco antes das 7h, o casal e um amigo brasileiro, Rafael Zimerman, começaram a ouvir mísseis.
Até então, a maioria dos jovens apenas seguiu o protocolo do Domo de Ferro: procurar um abrigo, e esperar. Ninguém imaginava que uma invasão por terra iria ocorrer. Quando ficou claro que havia terroristas em Israel, a situação se complicou.
Rafa, o namorado e um amigo buscaram uma carona até um abrigo mais próximo, onde ficaram por um tempo sós. Ao longo das horas, mais e mais civis buscaram refúgio no local. Ali, um bloco de concreto de 6 m², com capacidade para 20 pessoas, abrigava mais de 40. Do lado de fora, homens do Hamas atiravam e jogavam granadas e bombas de gás.
A sorte de Rafaela foi ter sido uma das primeiras a chegar no abrigo. A própria lotação do local, aliada à proteção de Hanani, impediu que os tiros a alvejassem. O namorado esteve com ela o tempo todo, a protegendo e a acalmando. Após horas de cerco, conseguiram ser resgatados pelo Exército. Hanani não teve a mesma sorte da namorada e do amigo. Foi alvejado por um dos tiros dos terroristas.
Hoje, ainda traumatizada, a jovem tenta reconstruir sua vida. “Tenho dificuldades em tudo. Eu virei um zumbi no primeiro mês após o ataque. Tenho sonhos, pesadelos, medos. As memórias são muito pesadas.”, conta. “ Mas existe um pós e essa é a minha maior mensagem. Tento sempre me manter positiva e o Hanani é a minha luz.”
Ecos do Holocausto
A argentina-israelense Silvia Cunio tem o olhar triste e vazio de uma mãe que não sabe o paradeiro dos filhos. Mais ainda, ela sabe em primeira mão o que a família passou nas mãos do Hamas, num trauma que evoca as piores lembranças da comunidade judaica. Em 7 de outubro, terroristas do Hamas invadiram o kibutz Nir Oz, e atacaram as casas de seus três filhos. Eitan, David e Ariel. Os dois últimos ainda estão nas mãos do Hamas.
Eitan, sobreviveu ao ataque, mas a sua história talvez seja uma as das mais cruéis de Nir Oz, onde cerca de um quarto da população de 400 pessoas morreu ou se tornou refém dos terorristas.
Segundo o relato de sua mãe, no dia do ataque, o eletricista, a mulher e a as duas filhas se trancaram no quarto seguro da casa do kibbutz para se proteger dos terroristas. Os quartos, como a maioria na região, foram feitos para aguentar um míssil ou um foguete. Os homens do Hamas então decidiram atear fogo ao local. Com as pessoas dentro.
As horas se passavam, a temperatura seguia e o quarto ia esquentando. Todos desmaiaram. Quando recuperou a consciência, Eitan tentou fugir. “Não iria morrer assim”, ele diria depois à mãe.
Mas o calor havia derretido a maçaneta da porta. As janelas também estavam travadas. O eletricista entao tomou a decisão que salvou a sua vida e a da família: arrancou o ar condicionado da parede, o que lhe possibilitou uma fresta para respirar.
Horas depois, eles seriam resgatados. Outras casas do kibutz também foram incendiadas com gente dentro.
A reportagem visitou os locais destruídos pelo fogo. Todos os móveis viraram cinzas e ferro retorcido. As paredes todas estavam enegrecidas pela chama. Muitas estavam condenadas.
“Agora estamos esperando para que meus filhos voltem com vida”, diz Silvia. “A esperança é a última que morre.”
Ataque anfíbio
Zikim, ao norte da Faixa de Gaza, foi um dos primeiros alvos do Hamas no dia 7. Frequentada por jovens naquele início de outono, é uma praia simples, com uma longa faixa de areia, banhada pelo Mar Mediterrâneo. Conta com uma pequena estrutura de banheiros e um modesto bar que serve bebidas e alguns petiscos aos frequentadores, a maioria moradora dos kibutzim e cidades dos arredores.
Segundo Moshiko Moskovitz, paramédico e reservista do Exército no kibutz de Zikim, aquele sábado era feriado e alguns jovens tinham acampado na praia. Amanhecia quando lanchas com ao menos dez homens do Hamas invadiram a praia.
Armados, eles começaram a disparar. Alguns jovens tentaram se esconder nos banheiros e no bar. As marcas ainda estão visíveis no local. Muitos tiros, alguns de grosso calibre, sinalizam que as vítimas tiveram pouca ou nenhuma chance de defesa. No restaurante, as geladeiras de bebidas estão semidestruídas e abandonadas, e o cenário é lúgubre.
A quilômetros dali, está uma das principais usinas de energia de Israel. Os terroristas tentaram chegar ao local, mas foram impedidos. O ataque a praia, bastante sofisticado em termos militares, bem como seus objetivos, também indicam que a magnitude do plano do Hamas era inédito na história de Israel.
“Os terroristas que escaparam tentaram invadir o kibutz e uma base de treinamento do Exército”, conta. “Mas o grupo de defesa do kibutz e da base conseguiram evitar uma invasão.”
Segundo o paramédico, se os terroristas tivessem conseguido tomar a base e a usina, o estrago teria proporções ainda maiores.
* O repórter viajou a Israel a convite da ONG StandWithUs Brasil