Em 2016, Maria Del Carmen, então com 68 anos, foi surpreendida por um beijo na bochecha enquanto assistia TV. Seis anos mais jovem e até então um desconhecido, o aposentado José Silva Neto foi o autor da ousadia. “Eu estava tranquila, quando, de repente, ele me deu um beijo. Vê se pode! Depois, ainda disse umas coisas, mas isso eu não posso contar”, relembra a aposentada, hoje com 77 anos.
Para quem conhece Maria — uruguaia séria e de poucas palavras — o esperado seria que a história terminasse ali. Mas não foi o que aconteceu: já são nove anos juntos, compartilhando a rotina como namorados na Instituição de Longa Permanência (ILPI) Santana, em São Paulo. Lá, assistem TV, se exercitam e saem para passeios acompanhados pelos funcionários e outros moradores. Mas quando o assunto é intimidade, a realidade é outra.
“Seria maravilhoso fazer ‘outras coisas’, mas aqui somos uma comunidade. Se abrirem exceção, todo mundo vai querer. Aí vira bagunça”, diz Silva Neto, de 71 anos. Embora ambos tenham limitações de mobilidade, ele garante que “vontade não falta” e que “não existe idade para namorar, casar ou fazer sexo”. “Mas, no nosso caso, tem que ser no lugar certo. Quem sabe um dia a gente sai daqui. Aí levo ela lá para minha terra”, brinca ele.
Embora na ILPI Santana o diálogo sobre sexualidade seja mais aberto (já chegaram até a cogitar a construção de um “quartinho do amor”), essa não é a realidade na maioria dos espaços. O sexo, de modo geral, continua sendo um grande tabu — e, quando se trata de pessoas mais velhas, nem se fala.
“O envelhecimento é apenas mais um ciclo da vida, mas não o enxergamos assim. Há uma tendência cultural de reduzir idosos a corpos fragilizados, desconectando-os de suas histórias, hábitos e desejos. O amor e as relações sexoafetivas não escapam disso”, afirma a gerontóloga Christine Abdalla, consultora em envelhecimento e moradias coletivas.
Essa percepção se reflete nas próprias instituições. Quando se trata de casais, é comum que sejam separados ao ingressar nos residenciais: a mulher vai para a ala feminina e o homem, para a masculina. Quando conseguem dividir o quarto, muitas vezes são obrigados a dormir em camas separadas, mesmo quando não há justificativas claras para isso.
“Em uma ILPI, havia uma senhora que fazia questão de dar banho no marido, já bastante fragilizado, apesar da presença dos cuidadores. Aquele corpo não era um corpo que ela queria que fosse visto ou tocado por outras pessoas. Era um momento de conexão entre eles”, relata Christine. “Infelizmente, quem vive em instituições também pode ser privado desse tipo de afetividade.”
A situação se torna ainda mais delicada quando envolve práticas individuais, como a masturbação, ou relacionamentos entre moradores que não se conheciam anteriormente. Nesses casos, as manifestações esbarram em vários obstáculos, como o perfil da instituição — as religiosas, por exemplo, tendem a ser mais conservadoras —, o preconceito tanto dos funcionários quanto da própria família, além da persistente associação entre desejo e patologias.
Embora essa conversa seja frequentemente colocada “embaixo do tapete”, a psicóloga Valmari Toscano, especialista em gerontologia, destaca que o envelhecimento no Brasil é uma realidade crescente, com 15,6% da população acima dos 60 anos. Com esse aumento, a composição das ILPIs também mudou. Antes, eram ocupadas principalmente por idosos com grandes limitações físicas e cognitivas. Mas hoje, muitos são lúcidos, ativos e até escolhem as instituições como alternativa de moradia, e não como último recurso.
“Inclusive, nós temos observado um aumento na demanda por profissionais como geriatras, psicólogos e gerontólogos para discutir sexualidade nas ILPIs, mas, na maioria das vezes, a expectativa dos gestores é que exista uma ‘correção’, como se estivessem lidando com um ‘problema’, e não como parte de um processo natural e educativo.”
“Aqui você se sente em casa”
Há 15 anos, Francisco (nome fictício), então com 79 anos, chegou a um residencial para idosos. Apesar de algumas limitações na mobilidade, mantinha uma vida sexual ativa com parceiras casuais — algo que não pretendia abandonar. E o slogan do residencial, “aqui você se sente em casa”, parecia uma brecha perfeita.
Ele dizia: ‘Mas eu não estou em casa? Como assim não posso trazê-las?’. Foi uma confusão. Eu brincava: ‘Quer que a gente mude o slogan? Posso providenciar isso para o senhor’”, relembra uma antiga funcionária do local.
Francisco insistiu na argumentação e, no fim, conseguiu um acordo: desconto na mensalidade, com transporte incluído, para manter os encontros fora dali. Embora o desfecho tenha sido esse, causou um grande alvoroço entre os funcionários. “Se é uma expressão mais ‘fofa’, tipo pegar na mão, até que vai, mas passou disso, a situação é bem diferente. O mesmo vale para a família, que costuma dizer coisas como: ‘Papai é fofo demais pra isso” ou “vamos dar um remédio para abaixar esse fogo?’”.
O desconforto da família e equipe é apenas um dos obstáculos. Segundo Christine, o próprio modelo de assistência coletiva limita a individualidade dos residentes, incluindo as expressões de afetividade e sexualidade. Para começar, são raras as ILPIs no Brasil que oferecem quartos individuais, sejam públicas ou particulares. Além disso, grande parte segue uma rotina rígida e padronizada, desde a distribuição de medicamentos até as refeições.
Embora esse formato facilite a organização e atenda à alta demanda — ILPIs brasileiras costumam ter, em média, 30 moradores —, ele também reduz a autonomia, ao mesmo tempo em que reforça a ideia de que pessoas mais velhas não têm desejos próprios.
“A prática do cuidado centrado deve ser praticada tanto por cuidadores quanto por gestores. Muitas vezes, uma simples conversa, com escuta ativa e sem infantilizar o idoso – deixando de lado termos como ‘vôzinho’ ou ‘vovózinha’ – já representa um grande avanço”, ressalta Christine. “Isso é importante porque num ambiente tão coletivo, é natural que existam pessoas que não têm desejos sexuais, mas por que seria impensável que existam outros Franciscos?”, questiona.
Desejo tende a ser confundido com patologia
Dona Zilma e Seu Bráulio se conheceram na ILPI Tulipas, no bairro da Mooca, em São Paulo. Quando ela começou a apresentar sinais de perda de memória, já se passavam cinco anos de relacionamento entre eles. “Mesmo com sinais claros de demência, ela nunca esqueceu dele, nem mesmo quando a doença evoluiu. Ele cuidava dela e ela esperava por isso”, conta Anicler Colares, gerente da ILPI Tulipas.
“Teve uma vez que outro morador tentou ‘passar a mão’ na dona Zilma e ela reagiu na hora, dizendo “não, não, não” e chorando muito. Com Seu Bráulio, a dinâmica era outra. Cada beijão que eles davam… A gente costumava brincar: ‘Se eu arrumar um namorado, não quero menos do que isso’”, recorda.
Embora possa ocorrer perda de libido entre pessoas com doenças neurodegenerativas — muitas vezes devido ao uso de medicamentos — ainda é possível observar expressões genuínas de sexualidade. “Especialmente nas fases iniciais ou moderadas, podemos ver essas pessoas criando laços afetivos com alguém ou até se envolvendo sexualmente”, diz a neurologista Elisa Resende.
Em situações em que as pessoas estão lúcidas e orientadas, basta que elas verbalizem o consentimento. Mas, no caso de pessoas como Zilma, o indicado é observar os sinais de bem-estar ou desconforto, a fim de avaliar se é consensual ou não. “Por exemplo: essa pessoa tem deixado de se alimentar? Está tendo dificuldades para dormir? Fica irritada ou evita a aproximação da outra pessoa? Ou, pelo contrário, demonstra prazer com a proximidade? Fica triste quando o outro se afasta?”, sugere Elisa.
A compreensão limitada sobre a sexualidade no envelhecimento, especialmente quando envolve pessoas em estágios demenciais, frequentemente leva à rejeição dessas expressões sob a alegação de hipersexualidade — um comportamento caracterizado pela perda de controle sobre os desejos e impulsos sexuais. Mas, segundo a neurologista, esse tipo de transtorno tem características específicas e, portanto, é facilmente identificável.
“É como se a pessoa perdesse o filtro. Pode se despir em público, se masturbar em frente aos outros ou agarrar alguém a força, por exemplo. É bem diferente das demonstrações legítimas de desejo, que geralmente envolvem um processo de aproximação”, explica a médica, que é coordenadora do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia.
O que se percebe, segundo Valmari, é que as demonstrações de afeto ou sexualidade são facilmente interpretadas como patológicas. Por exemplo, se alguém é flagrado se masturbando, mesmo em um ambiente isolado, pode ser imediatamente medicalizado, sob a justificativa de que “perdeu a censura” devido a algum tipo de demência, o que nem sempre é o caso. “No fim, o bom senso deve ser o principal parâmetro. Vale a pena perguntar: se uma pessoa mais jovem estivesse fazendo a mesma coisa, eu acharia estranho?”, orienta.
O armário
Sofia (nome fictício) e Teresa (nome fictício) se conheceram na universidade e, desde então, nunca mais se separaram. Moraram juntas por décadas e, quando a idade chegou, decidiram se mudar para uma ILPI. Sempre se referiram uma à outra como “minha amiga”, sem espaço para dizer abertamente: ela é minha esposa, minha namorada ou minha companheira.
“Certa vez, bati na porta antes de entrar, como manda o protocolo. Sem resposta, avisei que estava entrando. Ao abrir a porta, vi uma delas sentada no sofá e a outra com a cabeça em seu colo. O desconforto foi grande. Uma delas se levantou apressada e disse: ‘Nós só estávamos vendo televisão’”, conta Christine. “Embora não houvesse uma proibição explícita, o ambiente parecia hostil, e ninguém se sentia realmente à vontade.”
Para Valmari, histórias como a de Sofia e Teresa reforçam a necessidade de discutir a sexualidade em ILPIs, incluindo a orientação sexual, já que a população idosa LGBTQIA+ está aumentando nesses espaços. “Se já reprimem a sexualidade das pessoas heterossexuais, imagina a das que não são?”, reflete. “Muitas precisam ‘voltar para o armário’, escondendo sua identidade e suas relações afetivas. Isso é muito triste.”
Além disso, esse tema envolve outras questões importantes, como a necessidade de orientar os moradores sobre o uso de preservativos — especialmente diante do aumento dos casos de HIV entre idosos, que quadruplicaram nos últimos 10 anos — e de estimulantes sexuais, como o Viagra, que pode representar riscos à saúde quando utilizado sem acompanhamento médico.
Para Christine, a criação de um protocolo sobre sexualidade seria um avanço importante, mas não pode ser algo rígido e inflexível. “Cada caso é único. Então, algo padronizado, com passo a passo, dificilmente funcionaria. Mas um protocolo educacional, voltado para as equipes, que incentive um cuidado centrado na pessoa e contemple as múltiplas formas de expressão da sexualidade dentro das possibilidades de cada instituição, seria muito bom. Afinal, estamos falando mais do que sexo e troca de afetividade: estamos falando de mais autonomia, autoestima, saúde mental e qualidade de vida”, conclui.