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Por que inserir exercícios físicos em uma rotina já cansativa? Especialista explica

by Medicina Saúde
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Foto: Felipe Rau/Estadão

Guilherme Artiolidoutor em Educação Física, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP e novo colunista do ‘Estadão’

Embora a importância do exercício físico para uma rotina saudável não seja uma surpresa, a verdade é que essa é uma área considerada nova na ciência – e tomada por mitos e tradições. E por mais que uma parcela das pessoas insira esse hábito na rotina em busca de mais saúde e aptidão, o apelo em relação à melhora da aparência ainda é latente.

Isso, por um lado, pode ser bom: mais gente se movimentando. No entanto, essa motivação também tem seus prejuízos, segundo Guilherme Artioli, doutor em Educação Física pela Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP), professor da EEFE-USP e pesquisador da Faculdade de Medicina da USP. “O foco único na estética pode fazer profissionais negligenciarem capacidades físicas que são importantes para a funcionalidade, como aptidão aeróbia, potência, força, equilíbrio, mobilidade e flexibilidade”, explica. Com isso, “perdemos a oportunidade de sermos mais aptos a realizar bem tarefas do dia a dia”.

O especialista reconhece que inserir os exercícios na rotina, principalmente com esse olhar mais voltado para a saúde, é um desafio frequentemente subestimado. Porém, ele informa: trata-se de uma ferramenta tão poderosa que costuma ter um impacto positivo praticamente em qualquer tipo de cenário — sem orientação, supervisão ou estrutura. Por isso, é preciso incentivá-la.

Guilherme Artioli, novo colunista do Estadão, defende que é preciso incentivar a prática de exercícios e de atividades físicas, sempre que possível Foto: Kay Abrahams/peopleimages.com/Adobe Stock

Artioli atua na área de Fisiologia Aplicada e Nutrição, e é coordenador do grupo de pesquisa “Applied Physiology & Nutrition Research Group”, e do Laboratório de Genética Aplicada e Nutrição (EEFE-USP). Realizou pós-doutorado no Laboratório de Nutrição e Metabolismo da EEFE-USP e na Nottingham Trent Univeristy. Atuou como “Lecturer in Exercise Physiology and Nutrition” na Nottingham Trent University, na Inglaterra, e como “Senior Lecturer in Physiology”, na Manchester Metropolitan University, na Inglaterra.

A partir desta segunda-feira, 24, o especialista se junta ao time de colunistas do Estadão. Ele escreverá quinzenalmente, às segundas, trazendo a ciência para o treinamento do dia a dia.

Em entrevista, ele fala sobre o que podemos esperar de sua coluna e reflete sobre o cenário dos exercícios físicos no Brasil. Confira os principais trechos:

O que nossos leitores podem esperar da sua coluna?

Como cientista, meu objetivo é utilizar a coluna como espaço de difusão da ciência e de discussão de assuntos importantes para o mundo do esporte e do exercício. Os leitores podem esperar análises críticas e síntese de evidências sobre temas relevantes, novidades, atualidades e dúvidas comuns. Espero trazer críticas construtivas para a área de exercício, treinamento e esporte, provocando profissionais da área e a população em geral a refletir e, quem sabe, rever ideias. Se os leitores se sentirem convidados a uma reflexão racional sobre os temas que abordarei, terei cumprido minha missão.

Uma pergunta simples, mas que confunde muita gente: qual a diferença entre exercício e atividade física? Como cada um contribui para a saúde?

Atividade física é um termo genérico que se refere a qualquer movimento corporal que resulta em aumento do gasto energético. Já o exercício é um termo mais restrito, que se refere apenas aos movimentos realizados de forma programada, sistemática, com o objetivo de melhorar alguma capacidade física ou o desempenho esportivo.

Logo, exercícios são apenas parte das possibilidades dentro do universo das atividades físicas. Tanto o exercício físico quanto a atividade sabidamente melhoram a saúde em diversos aspectos, e recomenda-se que as pessoas busquem tanto realizar mais atividades físicas em seu dia-a-dia como realizar exercícios de forma regular.

A relação entre exercício físico e saúde tem sido cada vez mais estudada, mas, ainda assim, é um campo recente. Demoramos para perceber a influência dele na qualidade de vida? O que já sabemos e o que falta saber sobre essa relação?

A importância dos exercícios para a saúde já é conhecida há muitas décadas. Desde os anos 1950 já ficou clara a importância do exercício como agente protetor contra doenças cardiovasculares, por exemplo. De lá para cá, a ciência avançou muito e, hoje, sabemos inúmeros outros benefícios do exercício, e entendemos em detalhes os mecanismos biológicos que explicam esses benefícios. Se há poucas décadas um diagnóstico de doença quase que invariavelmente resultava na recomendação de “repouso” — isto é, evitar o exercício —, hoje já sabemos que treinar antes de uma cirurgia ou de um tratamento agressivo — chamamos de pré-condicionamento — pode melhorar a recuperação e o prognóstico do paciente.

Ainda há muito o que se entender. A interação do exercício com diversas condições, sejam elas doenças, uso de medicamentos ou fatores ambientais, ainda necessita de mais esclarecimentos. Com novas drogas e novos tratamentos surgindo, assim como mudanças ambientais rápidas, aumento dos níveis de poluição, exposição a novos tipos de agentes químicos, mudanças no estilo de vida, no padrão de sono, nos níveis de estresse, entre tantos outros, é preciso entender como o exercício pode ajudar nesses quadros, caso ele realmente possa ajudar.

É só abrir qualquer rede social para dar de cara com milhares de dicas sobre exercícios, algumas, inclusive contraditórias. Essa área é muito cercada de mitos? Qual o papel dos profissionais na disseminação deles? E como eles afetam quem faz ou quer iniciar uma prática esportiva?

As ciências do esporte e do exercício sempre foram inundadas de mitos e tradições, o que de certa forma é compreensível, pois se trata de um campo de conhecimento relativamente novo.

Há pelo menos duas décadas, o acúmulo de conhecimento científico nos permitiu descartar boa parte desses mitos, mas, atualmente, com o fenômeno das redes sociais, vemos que eles têm retornado com força na voz de pessoas com muita influência, porém, com pouca capacidade de exercer influência positiva. Isso preocupa. Além do retorno de mitos antigos, muitos deles são até inofensivos — ‘apenas exercícios aeróbios emagrecem’ —, as redes sociais estão dando eco para novos e perigosos mitos, como é o caso do mito do uso seguro de esteroides anabolizantes, que vem gerando uma verdadeira epidemia de abuso de drogas com efeitos colaterais importantes e, por vezes, irreversíveis.

As redes sociais estão dando eco para novos e perigosos mitos, como o do uso seguro de esteroides anabolizantes

Guilherme Artioli, doutor em Educação Física e novo colunista do ‘Estadão’

Desde quando o senhor observa essa “epidemia”? Quais as causas e os perigos por trás dela?

Há cerca de uma década, o uso de esteroides tem crescido entre praticantes de exercício físico, e tem sido cada vez mais normalizado dentro do universo fitness. Certamente há vários motivos para esse aumento, incluindo a valorização cada vez maior de padrões estéticos extremamente musculosos, e o surgimento de um padrão de beleza artificializado.

Soma-se a isso o fato de alguns médicos terem aderido à prescrição dessas drogas, sem qualquer justificativa clínica, e estarem lucrando muito com esse tipo de atividade. E ainda convencem outros médicos a seguirem essa estratégia. Eles criaram pseudoespecialidades não reconhecidas pelas entidades e sociedades médicas, e estruturaram um discurso sedutor, porém negacionista, que vende a ideia de que hormônios são fontes seguras de vitalidade e juventude, ignorando o enorme acúmulo de evidências que mostram os inúmeros riscos do abuso dessas drogas.

Tem algum mito em especial que te incomoda. Qual? Por quê?

Como cientista, é impossível não se sentir incomodado com qualquer mito que ganhe força. É como se a ciência estivesse perdendo uma batalha. E quando a ciência perde, a sociedade como um todo perde. Particularmente, os mitos que mais preocupam são aqueles que colocam a saúde e/ou o bolso das pessoas em risco. Infelizmente, temos testemunhado um crescimento vertiginoso de maus profissionais dispostos a criarem problemas que não existem para lucrarem com suas soluções, aproveitando-se da falta de conhecimento das pessoas para enganá-las.

Temos testemunhado um crescimento vertiginoso de maus profissionais dispostos a criarem problemas que não existem para lucrarem com suas soluções

Guilherme Artioli, doutor em Educação Física e novo colunista do ‘Estadão’

O que precisamos observar na busca de um bom profissional para nos orientar ou mesmo para seguir nas redes?

As pessoas devem estar alertas aos discursos exagerados e às promessas de resolução simples para problemas complexos. Devem também se atentar à postura negacionista da ciência, geralmente expressa pela contestação do consenso científico, à alegação de que o profissional possui soluções para problemas que a ciência ainda não solucionou, e ao uso de linguagem excessivamente técnica para justificar condutas que a maioria dos profissionais rejeita.

Um clássico é: contratei um plano de seis meses de musculação e abandono já na segunda semana. Por que fazemos isso?

Existem inúmeras barreiras para a prática de exercícios físicos, algumas de ordem financeira, outras de ordem prática, e algumas até mesmo de ordem emocional. Incorporar exercícios físicos em uma rotina cansativa, já cheia de compromissos, é um desafio frequentemente subestimado.

Isso requer mudanças prolongadas de hábitos, e essa é uma das coisas mais difíceis de se conseguir nas áreas da saúde. Recentemente, temos visto o florescimento de um ramo da ciência que estuda mudanças comportamentais e, em paralelo, o aparecimento de bons profissionais equipados com o ferramental necessário para auxiliar as pessoas a adotarem hábitos mais saudáveis de forma perene. Vamos esperar que esse tipo de conhecimento se solidifique, deixe de ser um serviço do tipo “exclusivo”, e se torne acessível a todos.

As pessoas devem estar alertas aos discursos exagerados e às promessas de resolução simples para problemas complexos

Guilherme Artioli, doutor em Educação Física e novo colunista do ‘Estadão’

Nesse sentido, qual a importância da personalização para a adesão e o sucesso de uma prática? O que precisamos considerar para escolher o melhor exercício para cada um de nós?

Ter um profissional, ou uma equipe de profissionais, ao seu lado te orientando e te motivando, garantindo o melhor estímulo e resultados otimizados é, sem dúvidas, um importante fator motivador e quase que garantia de sucesso. No entanto, não podemos cair no erro de acreditar que apenas esse tipo de cenário dá bons resultados.

O exercício é uma ferramenta tão poderosa que gera resultados positivos e benéficos em quase qualquer cenário, mesmo quando realizado sem muita supervisão, orientação ou estrutura. Por isso, devemos incentivar a prática de exercícios e de atividades físicas, sempre que possível. Ao escolher que tipo de atividade fazer, considere suas limitações, seu condicionamento físico atual, a estrutura que tem ao seu redor e as possibilidades de exercício ao seu alcance; considere também seus gostos e suas preferências, e faça o possível para manter a consistência. O principal fator para o sucesso de um programa de exercícios é a consistência.

As principais recomendações apontam que precisamos fazer ao menos 150 minutos de exercício por dia. Bastam 150 minutos semanais ou precisamos ter um olhar mais holístico sobre o quanto nos movimentamos diariamente?

As diretrizes são excelentes fontes de informações e recomendações gerais para a população. Elas devem ser entendidas como o que são: guias populacionais que nos ajudam e nos norteiam, e não programas individualizados com objetivos absolutos e inflexíveis. Portanto, sabemos que aqueles que conseguirem realizar ao menos 150 minutos de exercícios por semana terão inúmeros benefícios, incluindo redução do risco de mortalidade e de várias doenças.

No entanto, é possível realizar programas de exercícios muito mais completos, desenhados para atingir objetivos mais específicos, como desenvolver capacidades e habilidades que eventualmente se mostram deficientes, ou que são necessárias para um esporte ou atividade que a pessoa realiza, ou que se deterioram ao longo do envelhecimento.

Eu sou um daqueles que defende com afinco a ideia de que devemos treinar pensando naquilo que queremos que “nosso corpo faça”, e não em como queremos que “nosso corpo aparente”. O apelo estético ainda é predominante em nossa sociedade, e os programas de exercício normalmente refletem essa urgência em melhorar a aparência, com clara negligência à funcionalidade.

Os programas de exercício normalmente refletem essa urgência em melhorar a aparência, com clara negligência à funcionalidade

Guilherme Artioli, doutor em Educação Física, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP e novo colunista do ‘Estadão’

O senhor fala sobre uma negligência da funcionalidade nos treinos. O que deixamos de ganhar? Sobre o apelo estético do exercício, ele mais ajuda ou atrapalha no objetivo de termos mais gente se movimentando mais?

Não vejo problema nenhum em buscar melhoras estéticas com o exercício. Parece-me uma boa fonte de motivação, e certamente uma ótima razão para se sentir melhor consigo mesmo e querer continuar fazendo exercícios. No entanto, o foco único na estética pode fazer profissionais negligenciarem capacidades físicas que são importantes para a funcionalidade, e que pouco contribuem para a estética, tais como aptidão aeróbia, potência, força, equilíbrio, mobilidade e flexibilidade.

Ao negligenciar o desenvolvimento dessas e de outras capacidades, perdemos a oportunidade de sermos mais aptos a realizar bem tarefas do dia a dia, bem como tarefas extraordinárias. Normalmente não damos falta disso, já que nosso estilo de vida demanda muito pouco de nosso corpo. Mas basta nos dispormos a brincarmos com crianças, a praticar algum esporte ou a fazer qualquer passeio na natureza e logo percebemos o quão inaptos costumamos ser, mesmo aqueles dentro dos padrões estéticos.

Por fim, não podemos nos esquecer de que o foco excessivo em padrões estéticos pode servir de gatilho para comportamentos de risco, incluindo o abuso de esteroides e outras drogas, ou até de transtornos de imagem corporal.

Do ponto de vista de política pública, sabendo dos benefícios da prática regular, o que falta para incentivar que a população faça exercícios?

As grandes cidades no Brasil normalmente são hostis aos pedestres. São hostis aos ciclistas, aos patinadores e aos skatistas. São hostis aos que gostariam de se locomover sem carro. São hostis aos que gostariam de ter espaços públicos de lazer em todas as regiões. São hostis às crianças e suas brincadeiras de rua. Onde houver espaços públicos bons, adequados para a prática, e acessíveis à população, haverá pessoas usufruindo. Enquanto os espaços públicos e a própria organização urbana não forem convidativos para a prática de atividades físicas, de exercícios e de esportes, os exercícios físicos continuarão sendo serviço reservado àqueles que podem pagar por ele.

A população em geral sabe que ser mais ativo e fazer mais exercícios é bom, mas, por inúmeros motivos, não consegue colocar isso em prática. Historicamente, as mensagens populacionais sobre exercícios tiveram caráter educativo. No entanto, apenas conhecimento não é suficiente para mudar comportamento. Campanhas mais efetivas deveriam focar em estratégias para ajudar as pessoas a implementar mudanças de comportamento e incorporação de hábitos mais saudáveis de vida.

Fonte: Externa

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